“de repente a gente vê que perdeu ou está perdendo
alguma coisa morna e ingênua que vai ficando no caminho”
Esta manhã começara com calma, muita calma e um pouco de neblina que prometia um dia de livros e chás.
Ela bateu à porta. Enquanto eu me vestia sem pressa, respirando ainda o vapor do banho quente que cheirava a shampoo de guaraná e deixava no quarto um clima de limpeza e esperança nova.
Abri a porta e logo que a vi, também um largo sorriso. Sem perceber, já falávamos do lado de dentro, enquanto sob a fina garoa lá fora, folhas de goiabeira resvalavam no vidro embaçado da porta que mostrava em nuances a cidade a despertar preguiçosamente. O inverno estava acabando.
Surpreso, sentia uma felicidade quieta enquanto, me olhando nos olhos, ela segurava meu rosto entre as mãos finas, fazendo-me sentir o frio do anel amarelo-escuro que, fazia questão ao contar sua história, de dizer não a pertencer, como se assim seu valor aumentasse a cada vez que nobremente retirava-o devagar para mostrar as iniciais inscritas, FXA. Francisco Xavier de Assis. Meu avô.
Os primeiros barulhos feriam o ar parado do dia sem sol, enquanto aquele gesto único alargava os minutos de carinho.
Dizia da caminhada que faria, não fosse a chuvinha sem hora que começara quando resolveu sair mas, que assim, aproveitava para me fazer uma visita, logo pela manhã. Morávamos perto.
Enquanto eu colocava água para ferver, ela, já sentada, dizia entre xingos e bordões, que era loucura aquilo de dormir assim, só naquele colchão, colocado direto no chão frio. Aquilo seguramente era um mal sem tamanho para a saúde dos pulmões.
Falava sem perceber que agora a chuva já fazia reluzir os telhados, totalmente molhados.
Achava bonitos os pequeníssimos e insistentes pingos a equilibrarem-se sobre seus cabelos, indefinidamente brancos e macios.
Calou-se de repente. Eu agora ouvia um gotejar compassado, bem próximo à janela e muito longe, um martelo, marcando os segundos na madeira de algum móvel em 'concerto'. Seria um armário, onde estariam guardadas as lembranças de uma vida boa, cercada de gente feliz e amiga, ou um baú, guardião das saudades de uma uma grande família... uma bela história de amor... um amor único, que duraria ainda por muito, muito tempo, não tinha dúvidas.
Olhava-me profundamente e devagar, como só ela sabia fazer. Um olhar que abrigava, que acalmava a maior das ânsias, que preenchia, que emoldurava. Perguntou, (mas as palavras eram o que menos importava): Está deixando a barba crescer?
Neste momento, não pela pergunta pueril mas, sem que pudesse ou quisesse conter, e ainda sem entender direito, duas lágrimas grossas e quentes, rolaram, tendo uma delas ido mergulhar direto numa das xícaras, já contendo o chá de hortelã que eu preparava carinhosamente para aquela adorável visita.
Neste instante, tive vontade de dizer que a amava, sem mais nem menos, só dizer. Me contive (arrependo)!. Ela segurou a xícara já muito quente, e disse que há muito não tomava chá de hortelã. Que bom! Respondi. Agora então vai tomar um especialmente feito para senhora!
Sorriu! Sentado no sofá à sua frente, tendo aos olhos, através do vidro da porta, ruas encharcadas, pensei na vida simples que sempre levara e, nas muitas noites de frio que certamente passara ao lado de “Vô Chiquinho”, guerreiro cúmplice.
Pensava na inutilidade de toda a tecnologia, quando tudo o que temos somos nós mesmos para dar ao outro. Ah! Eu sei hoje que momentos assim valem uma vida!
Levando a xícara à boca, ouvia agora, muito ao longe ao invés do compassado martelar, uma música. Suave e orquestrada. Sabia, naquele momento, pelo aperto no peito e a voz fugida, que jamais voltaria a ouvi-la de novo. Fora feita exclusivamente para aquele instante, para aquele dia, para minha Vó Belinha.
Bebi, tendo a xícara como testemunha, mas percebi tarde, já não mais saber qual delas continha o amor em forma líquida.
Marden
06 / 10 / 05
Valeu vó! A gente se vê...