quarta-feira, 25 de junho de 2008
negócio
Vendi minha alma ontem à noite. Precisava de grana e não havia outro jeito de conseguir, a não ser assim, vendendo a alma. O diabo é que não esperava ouvir o que acabei ouvindo quando cheguei até aquele lugar escuro e abafado, onde um homenzinho, gordo, de bigode e, quase careca, me atendeu, depois de me fazer esperar muito.
Mandou, como se já soubesse o que me levara até ali, que me sentasse e preenchesse um questionário vastíssimo, como mais de cem perguntas. Depois sumiu num corredor escuro.
Enquanto eu lia, cuidadosamente as primeiras questões, uma senhora gorda e feia, encostada a uma porta me olhava de maneira inquiridora, como se, saber o que eu fazia ali, àquela hora da noite, preenchendo um questionário enorme, fosse a sua maior curiosidade.
O lugar era fétido, escuro e úmido, apesar do calor que fazia. Por vezes, senti calafrios, enquanto esperava o homenzinho voltar.
O questionário era igual a qualquer outro. Começava com as informações básicas. Do tipo, quem eu era, quantos anos tinha, qual era a minha profissão, minha formação acadêmica, etc, etc, etc.
Mas, na pergunta de número 66, as coisas começaram a ficar estranhas. Não acreditei quando li:
- Quanto você acha que vale a sua alma?
Perplexo. Foi como me senti. Mesmo estando ali para “vender” a alma, por que precisava de dinheiro e não havia outro jeito de arrumar, senão vendendo a dita cuja. Mas o fato, é que, eu não esperava que num simples questionário onde eu respondia perguntas sobre dados pessoais, fosse encontrar, assim, nua e crua, tal pergunta assustadora.
Muito esquivamente, desta agora, era o homenzinho gorducho e de bigode que me olhava, já sentado e a escrever rapidamente à máquina que fazia um barulho ensurdecedor para uma simples máquina de escrever.
Suava, e molhava toda a camisa, enquanto a senhora feia, agora servia café, ( não tinha percebido que a sala onde estava, já abrigava outras pessoas, que também respondiam o questionário ).
Uma situação inusitada quebrou a burocracia que boiava no ar parado da sala mal iluminada.
A porta à frente da mesa do homenzinho, se abriu e, de lá sairam duas mulheres muito bonitas, uma loira de cabelos cacheados e olhar lânguido e uma mulata de pernas grossas e uma saia justíssima, causando um certo desconcerto no gorducho que limpava a testa com um lenço branco. Lá de dentro da sala, se ouviu nitidamente uma voz muito rouca acompanhada de tosse seca dizendo:
-PRÓXIMO!
Todos se entreolharam, inclusive eu o gorducho que agora parecia intimidado e, revirava umas fichas que estavam sobre sua mesa desarrumada enquanto olhava sério, parecendo querer me confidenciar algo importantíssimo. Fez sinal com a cabeça para que eu me aproximasse. No que cheguei a um passo de distância, disse em voz quase inaudível: Sua vez!
Ainda perguntei se não devia terminar de preencher o questionário. No que ele, me abanando a cabeça redonda e suada disse: você já respondeu o necessário. O que me fez tremer as pernas e ficar com a boca seca.
Como assim já respondi ?! Ainda não havia mostrado a ninguém o que escrevera.
Mas já que estava ali, não haveria de me fazer de rogado. Pus-me a andar firme em direção a sala do que agora eu entendia por “chefe”.
Entrei, fechei a porta e sentei. Antes que o homem pudesse dizer algo, já estava a sua frente com o questionário numa das mãos, que suava em bicas.
-Então... Sr. Ramiz... O sr. prentende...
E parou para acender um charuto já pela metade.
-O que exatamente o Sr. Espera de nossa empresa?
E antes que eu pudesse responder, duas batidas na porta, e a gorda feia que servia café entrava com uma bandeja onde havia um bule muito velho e sujo e duas xícaras de alumínio amassado. Serviu uma das xícaras e ofereceu ao homem. A outra xícara colocou à minha frente com desdém e saiu sem me servir.
-Mas onde estávamos? Ah! Sim.Em que o Sr. Acha que podemos ajudá-lo?... sr...?
- Ramiz. Vander Ramiz.
- Sim! Sr. Ramiz. Desculpe! É que ando meio preocupado, muitas cobranças, o Sr. Sabe como é, né?
- Sim! Respondi prontamente.
- Não sei se o Sr. Conhece nosso trabalho, Sr. Ramiz. Nós estamos a pouco tempo no mercado e ainda não fizemos propaganda, nem divulgamos nosso nome, para falar a verdade nem mesmo placa de anúncio ainda possuímos. Estamos funcionando quase na clandestinidade. Só não fomos pegos na fiscalização por que o cara que é responsável lá é amigo meu e “deu uma aliviada” na papelada...
- É. Eu sei bem como são essas coisas. O que me traz aqui é um fato bem parecido.
- Não me diga! Mas o que aconteceu?
- Bem, tudo começou quando eu conheci uma garota, há uns seis meses atrás. Nos encontramos num curso onde estudávamos juntos, ficamos muito amigos e, daí para começar o namoro foi um pulo. O relacionamento foi ficando cada vez melhor e mais sério. Agora ela quer casar. Há algum tempo que vem insistindo nessa idéia de casamento e para completar a situação, a mãe dela me odeia. Vive dizendo que eu sou um “Zé-ninguém”, que eu não presto pra nada, que não criou a filha para virar mulher de malandro e outras coisas menos agradáveis de se ouvir. Por isso, há um mês mais ou menos, eu e um amigo, resolvemos abrir um negócio juntos. Tínhamos pouco dinheiro, mas acreditávamos que daria certo...
- Daria ? Por que, “daria?”
- Pois é. E teria dado muito certo, mas só depois do negócio pronto foi que descobrimos que as pessoas não haviam sido sinceras na pesquisa que fizemos para saber qual a grau de aceitação que um negócio como aquele teria.
- E qual foi o resultado?
- Satisfatório. Tanto que, animados com os números da pesquisa, pedimos dinheiro emprestado e abrimos já de início uma filial, sem mesmo ter inaugurado a matriz.
- E qual foi o resultado, Sr. Ramiz?
- Desastroso. Para não dizer, vergonhoso.
- Então o Sr. está, pelo eu vejo, com o nome sujo na praça?
- Quem me dera fosse só o nome. O fato é que agora eu corro risco de vida. Não posso nem sair de casa sem me precaver. Minha vida tem sido um inferno!
- Calma Sr. Ramiz. Vamos ver o que podemos fazer para ajuda-lo. Como te disse, nossa empresa é nova no mercado, ninguém nos conhece ainda. Talvez tenha sido o primeiro a nos procurar.
- Mas, e as moças que saíram ainda agora daqui? Perguntei sem me conter.
- São duas estagiárias que farão o serviço de secretárias. Em breve devem aumentar os pedidos. Sabe que seguro morreu de velho, né?
- Sei! Mas e quanto aos serviços oferecidos pela empresa... A propósito, qual é mesmo o nome da empresa?
- Valores Razões e Himportãncias, VRH.
- VR “h”?. Mas, importância se escreve com “ i ”!
- Eu sei, Sr. Ramiz, eu sei. Mas, é que não havia nenhum sinônimo que pudesse substituir a importância do nome, entende? E não havia palavra em nossa língua que desse o real sentido ao nome que eu queria. Por isso resolvi chamar a empresa de VR”H” - Valores Razões e “Himportâncias”. Uma empresa comprometida com o cliente até o fim!
- É um eslogan e tanto, mas o Sr. Não pode, simplesmente por querer, mudar a forma e a maneira correta da grafia de uma palavra e, além disso, nomear uma empresa contendo tal erro. Isso é inadmissível.
- Sabe o que é Sr. Ramiz. É que o cara lá da academia de letras é meu chapa... Sabe como é, né?
- Sei. Sei sim.
- Então, o Sr, está com a corda no pescoço, e não tem como tirar, não é isso?
- ... é
- Então, me diga, de quanto o Sr precisa para se livrar dos cobradores Sr. Ramiz?
- Não sei bem ao certo. Mas garanto que vai se assustar...
- Mas por enquanto só estamos estudando o seu caso. Pode dizer sem susto!
- ... bem, se somar tudo, incluindo o do ônibus, mais o que me levaram no assalto de ontem e os impostos e o menino do amendoim... ...acho que uns... uns... sessenta mil... ...é ... acho que sessenta mil dá...
- hum... sessenta mil.
- É ! Isso dá.
- Mas estamos falando de qual moeda Sr.Ramiz?
- Bem, não sei quanto ao Sr. Mas, eu só negocio em real. E tem que ser em espécie, para que nada dê errado. Não é mesmo?
- É. Vê-se que o Sr. é um homem precavido, Sr. Ramiz. Faz bem em o ser. Hoje em dia é bom desconfiar de tudo.
- ...e de todos... Completei.
- Bem, Sr Ramiz. Sendo assim, acho que o Sr. não terá muitos problemas em quitar suas dívidas, mesmo porque a quantia que o Sr. considera alta, não é lá assim muito difícil de se arrumar. Conversarei com meu sócio e então no máximo daqui a dois dias o Sr. pode nos procurar de novo para pegar o dinheiro.
- Oh! Quanta alegria me dá Sr. Não pode imaginar o alívio que me causam tais palavras. Muito agradecido. Voltarei então daqui a dois dias.
- Isso Sr. Ramiz, faça isso. E ao sair faça o favor de deixar o questionário com o meu secretário. E pode tranqüilizar-se, em breve se verá livre das dívidas e poderá descansar em paz.
- Oh! Muito obrigado! Então até mais!
- Até mais Sr. Ramiz!
Levantei-me e sai. Do lado de fora da sala estava tudo como antes. Só mais algumas pessoas respondiam o tal questionário.
Entreguei o meu ao homenzinho da mesa e sob o olhar inconveniente da gorda que servia café, me retirei daquele lugar horrível.
Mas o fato é que agora eu já não estava tão aflito como quando cheguei ali. A noticia de que teria o dinheiro em dois dias me tranqüilizava e, podia ser até que a quantia que receberia desse também para começar outro negócio. Menor, porém, meu. O que seria mais fácil de gerenciar e com isso mais fácil também de obter lucro.
Não sei como dizer, mas o fato é que aquela noite passara como um sonho. Sem que me desse conta, já era quase de manhã e eu ainda vagava pelas ruas encharcadas pela água da chuva que a essa hora tinha dado um trégua.
Dei por mim assustado, quando percebi as horas. Já eram quase dez da noite e eu ainda não havia saído de casa para ir até a VRH buscar o dinheiro.
Levantei-me rapidamente do sofá, calcei os sapatos peguei o casaco e sai.
Tomei o primeiro táxi que consegui parar. O que era raro em noites de sábado como aquela. Em quinze minutos estava à porta da empresa, que ainda sem placa, dava impressão de abandonada. Só então foi que me dei conta que não sabia como havia tomado conhecimento que ali se faziam empréstimos e nem quem me dissera que conseguiria resolver os meus problemas financeiros naquele lugar. Estranhíssimo!
A chuva começava a ficar mito forte, nas ruas já não se viam pessoas e os carros eram poucos. Entrei.
Descendo as escadas reparei que o lugar não parecia em nada com uma empresa que empresta dinheiro como as outras que funcionavam na cidade. Não havia placa, nem guichê, nem ninguém para receber os interessados. Era um porão muito sujo e mal cheiroso.
Quando cheguei à sala onde o homenzinho gordo ficava, me deparei com uma cena completamente inusitada. Para não dizer absurda. Sacos e mais sacos de dinheiro esparramados no chão. Não se podia contar quanto de dinheiro havia ali, ao alcance dos olhos, mas posso garantir que daria para mim, e mais umas três gerações da minha família, sem medo de errar.
Paralisado pela cena, só pude perceber que não estava sozinho quando ele tocou no meu ombro, por trás e disse:
-pensei que não viesse!
-confesso que tremi. Suava frio quando respondi, me virando para ver quem era.
-Não haveria de faltar. Afinal é do meu interesse.
-Que bom. Do meu também Sr. Ramiz, do meu também.
-Mas o que aconteceu aqui? Por que tanto dinheiro jogado no chão?
-Ah! Isso deve ser coisa do Demócrito, meu secretário. Eu pedi que trouxesse a quantia que o Sr. havia pedido para esta sala. Onde ele ficava não era muito seguro.
-Mas... Aqui tem muito mais de sessenta mil reais!
-Mas na verdade o Sr.precisa de muito mais dinheiro do que pensa Sr. Ramiz...
- É... Pode até ser... Mas isso tudo que está aqui eu não tenho como pagar...
-Ora! O que é isso Sr. Ramiz? O senhor não pode é ficar devendo...
-Eu sei, mas... Isso aqui é dinheiro demais e eu não teria como devolve-lo, mesmo que trabalhasse o resto da vida.
-Então o Sr não quer resolver o seu problema?
- -É claro que eu quero! Mas não posso arcar com um compromisso tão absurdo!
- -Mas o Sr. não veio até aqui disposto a vender a alma Sr Ramiz?
- -...
- -Sr. Ramiz?! O Sr. precisa de dinheiro. Precisa se ver livre das dívidas.
- -Mas quanto é que vale uma alma para o senhor?
- -Isso é muito delicado e complexo, Sr Ramiz... não posso simplesmente dar um, preço a uma alma...
- -Então como é que se sabe o valor de cada alma?
- -Isso depende.. cada alma tem um preço... pelo menos pra mim tem.
- -E quanto vale a minha alma?
- -Vale cada insignificância do seu pensamento.
- -Quer dizer que o que eu não considero importante é o que vale a minha alma!
- -É estranho! Mas é isso mesmo Sr. Ramiz. A sua humanidade não vale por aquilo que faz de bom ou pelas boas ações que realiza. A sua alma e pesada pelas ínfimas coisas que, por serem tão pequenas e insignificantes, acabam sendo esquecidas.
- -Então minha alma não vale sessenta mil reais?
- -HÁ ! HÁ ! HÀ ! É claro que não!
- -Então como vou saber quanto vale minha alma?
(continua)...
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Nossa! NeM aCrEdItEi...
...logo na hora que estava ficando bom.
(aguardando)
bj de dentro
"A chuva começava a ficar mito(muito) forte,"
Postar um comentário