quarta-feira, 18 de abril de 2007

poetas




Não o conhecia, mas já lhe dissera quem era e que foi dos maiores poetas que Portugal já teve. Poeta ele que escrevia da alma e do mundo e da morte e de tudo e nada. Um fingidor.
Disse que parecia com ele. Quando colocava os óculos redondos e pequenos e parava sentado à cadeira a olhar o vazio e pensar, parado, como só existisse no mundo ele e a cadeira velha.
Gastara a vida cuidando de si e da família e administrando o tempo que às vezes parece longo demais para o repetido das almas grandes e desertas. Mas tudo é deserto, incluído as almas grandes e desertas.
Tinha 54 anos de vida, de existência eram muitos mais. Era velho já menino. Via algumas fotografias suas e pensava no seu rosto hoje, quase não se notavam diferenças. Aos 20, já dava impressão de homem maduro e castigado pela saúde debilitada que viria a lhe imprimir rugas tristes, que o não deixariam nunca.
Não tivesse andar de gente comum como qualquer outra gente comum, podia chamá-lo também poeta. Sua tristeza dava a ele essa profundidade de estátua cinza e perdida no não-tempo das praças vazias. Era como a hera se prostrando sem pressa, umedecendo os móveis, se esquivando da luz.
Em casa nossa, ele era os móveis carcomidos, as paredes descascadas, o bolor a escurecer os cantos onde a limpeza não alcançava.
Tinha-o por feliz muito raramente. Só mesmo quando os pequenos da família vinham a falar e falar sobre estas coisas desconexas e sérias que só mesmo elas e ele na sua gravidade de poeta que não escreve sabiam ter.
Deixavam-se a falar e calavam com a mesma cerimônia dos simples. Toda tarde de sábado, (era quando se davam as visitas dos seus irmãos que traziam os sobrinhos pequenos), ganhava um colorido diferente, uma atmosfera sagrada, mas sem oração.
Tinha manejo das ferramentas simples, retirava o excesso da madeira quando via alguma arte desejando liberdade. Sabia-se um artista.
Das dores que reclamava, e não reclamava de muitas. Estava a que mais me pedia sem palavras, cumplicidade: A dor de ser.
Não era menos densa e maior a sua angustia. Tinha mesmo esse mal a impregnar nobreza em nosso lar.
No fim de ano, nas festas de natal, era um outro homem que eu via me olhar com os mesmos olhos, já tão conhecidos. Ele fazia, em silêncio, os arranjos coloridos na estante no canto da sala. Às vezes o ajudava, mas era como se soubesse que aquele pequeno e modesto gesto fosse só dele. Deus, no alto da parede, pregado e olhando para nós, certamente gostaria, fosse eu religioso como ele, de saber como pensava naquele momento em humanidade e existência.
Solidão e esperança era o que o momento significava para mim.
Cozinhava também. Gastava toda a claridade do dia 24 a fazer a pequena ceia para que, juntos, à noite, ouvindo os risos da grande gente reunida na casa de minha avó, conversássemos calmos como convinha, sobre a vida e o ano que chegava.
Era triste a sua presença. Mas eu gostava de estar triste ao seu lado. Era uma tristeza da qual penso precisarem algumas pessoas que não sabem o que é chorar por quem ainda está vivo e perto. Chorava por ele às vezes. Sabia que ele também chorava por nós. Pela saudade que sentíamos mesmo estando ainda aqui.
Sei que não se esquecera da mulher que tanto o acompanhara na felicidade e guardava na memória agora longe... Nos dias que ficaram para traz.
Um grande homem em sua dimensão de humano ser. Uma grande alma combalida pelas tramas do existir num mundo caduco que não presta a quem lealmente segue o curso orgânico das coisas da vida. A natureza é cruel para com gente assim.
Talvez seja mais certo dizer, que na verdade, era aquele “outro” poeta conhecido e desconhecido pelo obscuro que penetrou no mais alto de sua janela, de onde atirou os mais altos escritos de si para o mundo, era ele, quem no umbral de sua consciência atormentada, do seu espírito diverso, era ele, o poeta que tão completamente fingia que era a dor que não era, segundo ele, a dor que os que o liam sentiam e, ao ler sentiam bem, era esse. Esse o poeta. A pessoa que se parecia com ele. Com o que não escrevia, mas sentia, era poeta também. Era ele quem se parecia com o que eu conhecia e passaria a chamar de poeta. Ou de pai.

Um comentário:

Anônimo disse...

Um brinde ao Pessoa!